Na nossa democracia representativa, em que “todo o poder emana do povo”, os cidadãos escolhem a cada 4 anos, por meio de eleições, os representantes que tomarão as decisões em seu nome, inclusive, decisões que podem retirar os próprios gestores públicos do seu cargo eletivo, ainda que no meio do mandato, antes mesmo das eleições. Isso só pode acontecer, obviamente, desde que dentro de algumas circunstâncias específicas previstas na lei. Por isso que em âmbito municipal os vereadores (membros do Poder Legislativo local) podem cassar o mandato do Chefe do Executivo (Prefeito), bem como o mandato dos próprios vereadores. Nesse texto, vamos entender quais atitudes ou atos poderiam levar o Prefeito a ter o seu mandato cassado pelos representantes do povo (os vereadores), e como funciona o processo de cassação conduzido pela Câmara Municipal, de acordo com a legislação vigente.
O Decreto-Lei 201/67 é uma lei federal que trata das responsabilidades dos prefeitos e dos vereadores. Essa norma une direito material e direito processual, ou seja, ela nos traz os motivos (os assuntos, as matérias) pelos quais um prefeito pode ter seu mandato cassado, e estabelece as diretrizes e procedimentos que a Casa Legislativa deve adotar (o processo) diante de atos infracionais que poderiam levar à cassação de mandato. Apesar de o nosso ordenamento jurídico atual não admitir a criação de novos Decretos-Leis, alguns deles seguem válidos (em vigor), o que é o caso do Decreto-Lei 201/67. Portanto, devemos observar o cumprimento dessa norma diante da abertura de um processo de cassação na Câmara de Vereadores.
Crimes de responsabilidade e infrações político-administrativas praticados pelo Prefeito sujeitos à cassação de mandato
No artigo primeiro, o Decreto-Lei 201/67, trata dos crimes de responsabilidade e, no artigo quarto, fala das hipóteses de infrações político-administrativas praticadas pelo Prefeito. Embora possa haver semelhanças entre elas, existem diferenças importantes que precisam ser pontuadas. O crime de responsabilidade é uma conduta ilícita cometida por agentes políticos no exercício de suas funções públicas. Esses “crimes” desrespeitam o Estado e a ordem pública, de modo que o Prefeito fica sujeito a um processo de natureza jurídica, sendo processado pelo Poder Judiciário. No Decreto Lei 201/67 ainda consta que os prefeitos serão julgados pelo juiz singular, mas a Constituição Federal atual estabeleceu para os prefeitos o foro por prerrogativa de função (o tal “foro privilegiado”), portanto, o Chefe do Executivo Municipal é julgado no Tribunal de Justiça. O Artigo 1º do DL 201 traz 23 hipóteses (atos, decisões) que configuram crimes de responsabilidade dos Prefeitos, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, como por exemplo: apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio; ordenar ou efetuar despesas não autorizadas por lei; deixar de prestar contas anuais da administração financeira do Município a Câmara de Vereadores; Adquirir bens, ou realizar serviços e obras, sem concorrência ou coleta de preços, entre outros. Nesses casos, não há o pronunciamento ou participação da Câmara dos Vereadores.
A infração político-administrativa, por sua vez, refere-se a condutas irregulares cometidas por agentes políticos no exercício de suas funções administrativas. Essas infrações estão relacionadas ao descumprimento de deveres, normas ou princípios que regem a administração pública. Diferentemente dos crimes de responsabilidade, as infrações político-administrativas não são consideradas crimes no sentido penal.
Elas estão relacionadas a atos administrativos e políticos que podem configurar má gestão, ineficiência, descaso com o interesse público, entre outras irregularidades no exercício do cargo.
Por isso, o processo de prefeitos e vereadores por infrações político-administrativas está sujeito ao julgamento pela Câmara Municipal, e não pelo Judiciário, já que se trata de um julgamento político, podendo concluir apenas pela cassação do mandato eletivo. Mas é possível que um só fato acarrete a abertura e andamento dos dois processos paralelamente e, dessa forma, o prefeito pode responder por um crime de responsabilidade que também configura uma infração político-administrativa, já que um processo realizado pelo Poder Judiciário não exclui o julgamento político da Câmara Municipal, e vice-versa.
No artigo 4º do Decreto-Lei 201/67 constam dez infrações político-administrativas e, dentre elas, encontram-se várias situações que cotidianamente acontecem nas Câmaras e municípios. Por exemplo: ao deixar de repassar (ou repassar atrasado) os duodécimos para o Legislativo, o prefeito está impedindo o funcionamento regular da Casa, uma vez que, sem recursos, a Câmara não consegue funcionar e exercer as suas funções constitucionais. Outro fato recorrente nas Câmaras Municipais é o Prefeito, ou seus subordinados (secretários municipais, servidores do Executivo), deixarem de responder, sem motivo justo, os pedidos de informação ou de convocação dos vereadores, bem como deixar de apresentar ao Legislativo, no prazo legal, a proposta orçamentária. Essas são, portanto, algumas razões que justificariam a abertura de um processo político de cassação de mandato do chefe do executivo, conforme o artigo 4º do Decreto-Lei.
O Rito e as atribuições dos vereadores durante um processo de cassação na Câmara
Nessa esfera política, o processo de apuração e responsabilização dos gestores municipais envolve a formação de uma Comissão Processante na Câmara de Vereadores, que investigará a denúncia apresentada. Segundo o Decreto Lei 201/67, a denúncia pode ser feita por qualquer eleitor brasileiro, seja ele do município ou não. Apresentada a denúncia na Câmara, o Presidente deve submetê-la imediatamente ao plenário, que decidirá pelo recebimento (ou não) da denúncia e, para isso, é necessário obter a maioria simples de votos (que significa o voto de mais da metade dos vereadores presentes na reunião, desde que esteja presente a maioria absoluta da Casa). Sendo acatada a denúncia pela Casa, o processo segue adiante, agora conduzido por uma Comissão Processante composta de três vereadores, que serão sorteados entre todos os que não possuem impedimentos para participar.
Importante ressaltar que se o denunciante ou o denunciado for um vereador, este não poderá participar da votação referente ao recebimento da denúncia, nem integrar a comissão, para que seja garantida a imparcialidade dos atos, já que a comissão é responsável por conduzir toda investigação, e pela apresentação de parecer, contendo suas conclusões sobre a procedência ou não das acusações. Aliás, a quantidade de membros que compõem uma Comissão Processante na Câmara é um aspecto que precisa ser reformulado no Decreto-Lei 201/67, pois, no nosso entender, se encontra inadequado para os dias atuais, já que, quando ele foi editado, em 1967, as Câmaras do Brasil eram todas muito pequenas. Hoje, existem Câmaras com 55 vereadores (que é o caso do Município de São Paulo), o que torna desproporcional um processo de cassação ser conduzido por apenas três membros das Casa Legislativa.
Os vereadores integrantes da Comissão Processante possuem atribuições muito importantes, tais como, fazer a notificação do denunciado, para que, em até 10 dias, ele apresente a sua defesa prévia; investigar cuidadosamente os fatos, analisando as provas, os argumentos de defesa e demais documentos do processo; realizar a oitiva de testemunhas e diligências, elaborar pareceres (preliminar e final), dentre outros atos. Ao final das investigações, a Comissão submete um relatório (parecer final) ao julgamento definitivo do plenário, e, para o Prefeito (ou o vereador) ser considerado responsável pelas acusações, e ter o seu mandato cassado, deve haver um quórum qualificado de dois terços do Plenário a favor da cassação.
Consequências (penalidades) para o prefeito ou vereador cassado e a anulação Judicial de Comissão Processante
A cassação do mandato determinada pela Câmara resulta na perda do cargo antes ocupado, ou seja, o político é afastado de suas funções públicas, ficando, inclusive, inelegível por um período determinado, o que o impede de se candidatar a cargos eletivos durante o tempo estipulado pela legislação eleitoral. E em caso de renúncia durante o processo, não há como o denunciado “fugir” da inelegibilidade, porque a Lei Complementar 64 de 1990, conhecida como Lei das Inexigibilidades, diz, no seu artigo 1º, inciso I e alínea k, que são inelegíveis para qualquer cargo o prefeito e os vereadores que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento da denúncia. A inelegibilidade se dá para as eleições que se realizarem durante o período que restaria do mandato em andamento, e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura.
Mas as penalidades e consequências para um prefeito ou vereador que teve seu mandato cassado podem variar de acordo com as circunstâncias específicas do caso. Dependendo do caso e das infrações cometidas, o prefeito ou vereador cassado pode responder por processos-crime ou ações judiciais cíveis, puníveis com diversas sanções, como multas, restituição de valores, e até mesmo a prisão.
Na medida em que a Câmara de Vereadores ou a Comissão Processante fere alguma regra constitucional, princípio ou atua fora dos procedimentos estabelecidos pelo Decreto-Lei 201/67, a instituição legislativa dá margem para uma possível nulidade processual. O denunciado, sentindo-se prejudicado por algum ato ilegal praticado pelo Legislativo, pode recorrer ao Judiciário pedindo a anulação do processo de cassação, por exemplo, se não foi observado o quórum para o recebimento da denúncia; ou, se não foi dada a oportunidade de ampla defesa ao acusado, significa que houve falhas nos procedimentos. Nesses casos, o processo poderia ser anulado pela Justiça. Entretanto, não é possível haver questionamento nem interferência do Poder Judiciário quanto ao mérito (por exemplo: dizer se determinada atitude configura ou não quebra de decoro), pois a decisão quanto ao motivo da cassação é da Câmara Municipal.
Ao acompanhar a jurisprudência (decisões dos Tribunais de Justiça) percebemos que, não raras vezes, o Poder Judiciário anula atos realizados pelas Câmara de Vereadores, em processo de cassação, por contas de vícios formais (processuais) praticados pelos membros da Comissão Processante. Portanto, para evitar esse tipo de questionamento, todos os atos e decisões realizados pela Câmara Municipal e pela Comissão devem estar de acordo com as regras previstas no Decreto-Lei e no ordenamento jurídico vigente (que envolve outras normas e princípios gerais do Direito).
É importante alertar também que, apesar de muitas normas locais tratarem desse assunto (equivocadamente), o Município não possui competência para legislar sobre matéria processual. Portanto, nem a Lei Orgânica do Município, tampouco o Regimento Interno da Câmara, podem criar ritos e regras próprias referentes ao processo de cassação de mandato.
A função julgadora e a responsabilidade dos vereadores no processo de cassação
Sempre que houver uma abertura de processo de cassação de mandatos na Câmara, os parlamentares exercem na plenitude a sua função julgadora, já que, nessas ocasiões, o Poder Legislativo funciona como um grande tribunal, e os vereadores atuam como juízes políticos. Dessa forma, conhecer o Decreto-Lei 201/67, à luz do ordenamento jurídico, faz parte das obrigações dos vereadores, para que tenham plenas condições de conduzir o processo de acordo com a legislação vigente, garantindo que o agente político infrator seja devidamente responsabilizado. A cassação do mandato de um prefeito tem repercussões políticas e jurídicas significativas, impactando não apenas o prefeito cassado, mas também a gestão municipal e a sociedade como um todo. Portanto, é essencial que os vereadores julguem com responsabilidade, buscando sempre a verdade, o interesse público, deixando de lado suas paixões, preferências e ideologias político-partidárias.
Se você precisa de ajuda e orientação para um processo de cassação aberto na sua Câmara Municipal, entre em contato com nossa equipe para que possamos lhe ajudar.
Autoria: Renata Cunha