Eu tenho certeza que você já ouviu aí na sua Casa Legislativa que “os membros do Poder Legislativo não podem apresentar projetos que criem gastos para o Executivo”.
De tanto ouvir falar que um projeto de autoria parlamentar não pode onerar os cofres públicos – muitas vezes pelos próprios assessores jurídicos da Casa – bem provável que você até acredite nisso como uma verdade inquestionável, principalmente se você é um(a) vereador(a) de primeiro mandato, ou assessor(a) parlamentar ainda inexperiente na função, já que, muitos vereadores eleitos e assessores, quando pisam na Câmara Municipal pela primeira vez, a primeira coisa que contam para eles, é que o Legislativo “não pode gerar despesa paro executivo”, e que só o Prefeito pode apresentar projetos de lei que tratam das políticas públicas mais importantes para o município.
Mas essa história NÃO é bem assim! Há alguns detalhes sobre isso que você precisa saber.
A nossa Constituição Federal, no Artigo 63, I, diz assim que “Não será admitido aumento da despesa prevista nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República”. (Leia-se Prefeito e Governador, por força do Princípio da Simetria Constitucional, por meio do qual há diversas regras e princípios são de repetição obrigatória aos estados e municípios, inclusive, você vai observar que na sua Lei Orgânica possui um artigo muito parecido com esse texto do Art. 61, §1º da CF, dizendo, mais ou menos, assim: “São de iniciativa privativa do Prefeito as leis que disponham sobre: …”
No artigo 63 da CF, de fato fica claro que a restrição que os parlamentares (vereadores, deputados) encontram está em apresentar EMENDAS aos projetos de iniciativa privativa ou exclusiva do chefe do executivo, que gerem aumento de despesas. Mas perceba: essa limitação de criar gastos não se estende a todo e qualquer projeto de autoria parlamentar: aqui, a Constituição se refere APENAS às emendas aos projetos que são caracterizados como de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo.
E quais são as matérias de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo (Prefeito, Governador e Presidente da República)?
Os assuntos de iniciativa privativa ou exclusiva do Executivo estão elencadas no Artigo 61, §1º, II da Constituição Federal, o qual nos diz quais pessoas (autoridades) têm poder de iniciativa (competência) para iniciar o processo legislativo nessas matérias. Veja o texto da lei:
CF, Artigo 61, §1º, II:
A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, (…) na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: (…)
II – disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
b) (…)
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
d) (…)
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;
f) (…)
Obs: Ocultamos as alíneas “b”, “d” e “f” porque não se aplicam aos municípios.
Diante da leitura deste artigo, pergunto a você: existe um mandamento constitucional no sentido de que a iniciativa parlamentar das leis complementares e ordinárias só é possível desde que não aumente despesa? NÃO!!! Nem aqui, nem em qualquer outro lugar da CF você vai encontrar essa regra. O que temos no §1º, II do Art. 61 é apenas o rol de assuntos que só podem ser regulamentados por iniciativa do Chefe do Executivo. Gerando despesas ou não, os parlamentares não podem apresentar projetos de lei que tratem sobre:
Alínea a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração (qualquer tipo de gratificação, reajustes, e tudo o que diga respeito ao salário dos servidores públicos);
Alínea c) regime jurídico dos servidores públicos, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (direitos e deveres do funcionalismo público);
Alínea e) criação e extinção de Secretarias e demais órgãos ligados ao Poder Executivo.
Resumindo: o que a Constituição nos diz nesse artigo é que os vereadores não têm competência para iniciar o processo legislativo nessas matérias, que só cabem aos chefes do Executivo (Presidente, Governadores e Prefeitos). E que, complementado pelo Artigo 63, quando essas autoridades apresentaram projetos tratando desses temas, os parlamentares não poderão apresentar emendas que impliquem aumento de despesas.
Mas se você ainda não está convencido(a) de que um projeto de sua autoria pode criar novos gastos para o poder público, saiba que o STF, o guardião da Constituição, já se posicionou diversas vezes em relação a isso. E a decisão mais conhecida é de 2016, quando julgou o RE 878.911/RJ, relativo a uma lei de 2013, cujo projeto foi de autoria de um vereador do Rio de Janeiro, que obrigava o Executivo instalar câmeras de segurança nas escolas públicas e cercanias (no entorno das escolas). Isso geraria despesa para o Município? Com toda certeza. O Tribunal de Justiça lá do Estado do Rio declarou a Lei inconstitucional (Lei nº 5.616/2013), e de lá foi como Recurso Extraordinário para o STF. E, pasmem: a Suprema Corte afirmou categoricamente que não invade a competência do chefe do Poder Executivo uma lei criada por um vereador, mesmo que gere despesa para Administração Pública, desde que, claro, essa lei não trate da estrutura básica do Poder Executivo, de órgãos públicos, ou da atribuição de seus órgãos, nem do regime jurídico de servidores públicos municipais (pois, como já vimos, são assuntos da iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo).
Ou seja, mesmo criando despesa, o STF decidiu que não havia inconstitucionalidade na lei de autoria parlamentar, nem vício no processo legislativo, tampouco vício de iniciativa pois não se tratava de competência privativa do Prefeito.
Essa decisão do STF se deu em repercussão geral, o que quer dizer que o efeito dela vincula todas as demais instâncias do Poder Judiciário, obrigando os Tribunais de Justiça do país a julgar, da mesma forma, todos os casos semelhantes que forem submetidos a eles, com base na tese firmada pelo Supremo. É o que o Direito chama de eficácia erga omnes, uma expressão em latim muito usada no meio jurídico, que significa que os efeitos de uma decisão, um ato ou lei, valem igual para todos, e que, a partir de então, atinge, não somente os envolvidos naquele processo, mas todas as pessoas e todos os outros casos parecidos.
Então, querido(a) leitor(a), a partir do julgamento desse Recurso RE 878.911/RJ, pelo Supremo Tribunal Federal, rompeu-se esse mito de que vereador não pode gerar despesa pro Executivo, mostrando que essa história não é bem assim como tanto se dissemina nas Casas Legislativas.